Lembrança da infância: conto inspirado num episódio real

Sabe aquelas histórias que contam nas rodas de amigos? Que todo mundo jura que é verdadeira? Eu tenho duas pra compartilhar

Já sentiu que não consegue mexer o corpo de jeito nenhum, mesmo parecendo acordado, na cama? Imagine sentir que algo ou alguém está vindo em sua direção.

alex mendes

A noite passada eu estava na sala de casa, quando escutei minha cachorra, uma lhasa-apso, fazendo um som diferente. Ela parecia ofegante. Mas não de cansaço. Um som similar ao que faz quando o piscineiro acabou de ir embora e abrimos a porta para que ela faça às vezes de pitbull que toma conta da casa.

Ela estava no corredor da despensa, onde dorme à noite. Sentada bem rente ao pratinho de ração. Da mesma forma que ela fica quando acha que alguém pode roubar sua comida.

Assim que entrei no cômodo, os pelos do meu corpo se arrepiaram. Aquela sensação de frio na espinha de que tem algo errado. Ou alguém no lugar errado. E não era eu.

Eu estava na minha casa. Olhei pra minha cachorra e ela estava com a cabeça voltada pra frente, na direção da porta da lavanderia. Bem para porta.

Olhei pra lá e tive a nítida sensação de ter alguém alto parado ali. Não sou médium, pelo menos que eu saiba, mas já senti a mesma coisa outras vezes e sempre por ali.

A sensação é mista. Você fica com medo por encontrar algo sobrenatural e ao mesmo tempo com raiva. O que isso estaria fazendo na minha casa, onde estou com a minha família?

Pela primeira vez, tive a coragem de enfrentar. Andei uns passos em direção à porta, que estava aberta, e perguntei em voz serena, mas firme:

– O que você quer?

Estava preparado para qualquer coisa. Levar um empurrão, ver objetos voando, um sussurro no ouvido. Tudo.

Nada.

Silêncio total. Repeti a pergunta. E mais uma vez recebi não recebi a resposta.

Bem, fiz minha parte: pensei. Virei as costas e fui embora.

Voltei algumas vezes depois e não senti mais o arrepio. Ou a assombração ou minha imaginação tinham deixado meu corpo e meu espírito em paz.

Mas isso me fez lembrar de uma história. Aliás, todo mundo conhece uma história meio esquisita pra contar numa roda de amigos.

Aconteceu há tempos, com um garoto. Ele tinha uns 10, 11 anos, talvez.

Morava no interior, numa cidade de porte médio, cujo trânsito permitia uma brincadeira deliciosa. Na frente da casa dele, o espaço entre uma árvore e um poste de energia se transformava num gol. Ele e os amigos usavam a estrutura para jogar golzinho de cabeça.

Era assim: um ficava no gol e os outros tinham de levantar a bola até uma boa oportunidade para cabeceá-la dentro das “traves”. Se fosse pra fora, gol do goleiro. Todos se revezavam nas posições e ganhava quem tivesse mais gols.

Toda sexta 13

O garoto passou a tarde inteira fazendo isso. Estava de férias.

Na hora de dormir, ele tinha um ritual noturno. Ritual esse calcado exclusivamente no medo.

Colocado na cabeça da criança pela pessoa que cortava seu cabelo.

Certo dia, o cabeleireiro e a mãe do menino conversavam sem se importar com a criatura abaixo de uma cuia e na frente do espelho com um toalha colocada do pescoço pra baixo pra receber os cabelos que caíam.

O assunto era a violência do mundo. Imagina, isso era nos anos 80…

– O demônio tá solto, dona Maria. Se não rezarmos muito, ele vai nos pegar.

Dez aves-marias, dez pais-nossos e dez credos passaram a ser a religião do garoto assustado. Se rezar espantava o mal, para que economizar nas orações?

Só que aquela noite, o cansaço bateu. Ele não rezou. E estava consciente disso. Foi preguiça mesmo. Afinal, ativar essa proteção anti-capiroto demorava muito. Preferiu o sono.

Foi quando sentiu o colchão abaixar. Como se uma pessoa tivesse ajoelhado na lateral perto dos seus pés.

Deu um pulo, sentou na cama. E ficou olhando aquele escuro do quarto. Calculando. Estava louco pra acender a luz. Mas o interruptor ficava longe.

Ele teria de levantar da cama, passar pelo ponto onde sentiu alguém ajoelhado segundos antes e dar mais alguns passos até acionar o botão.

O medo veio rápido.

Rezou. Vinte de cada pra garantir.

E adormeceu no Creio em Deus Pai.

Acordou no outro dia pensando naquilo. Falou com os amigos na hora de jogar bola de novo.

Imaginem a tiração de sarro estilo quinta série que ouviu.

Depois entre cabeceios e defesas, esqueceu.

Mas a luz do sol se foi.

E o receio de viver aquilo de novo fez com que contasse pra mãe. Ela fez o que mãe faz: tranquilizou o filho dizendo que tinha sido o cansaço, que tinha exagerado na atividade física e que deveria ter sofrido um espasmo muscular. O que deu a sensação de que alguém ajoelhou na cama.

Beleza, ficou tranquilo. Até a página 2.

Dormiu com a luz acesa.

No meio da reza, adormeceu de novo.

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Não demorou muito e a luz foi apagada. Instantes antes, na porta do quarto a mãe observou o garoto. O ronco leve traduzindo o dia agitado. Ela sorriu e deixou o menino no escuro.

Os refletores iluminavam as costas da camisa mostrando o nome dele e a letra 10. Quando iria chutar, foi derrubado pelo adversário. Caiu no chão. E sentiu o gramado abaixar perto de seus pés, como se o zagueiro tivesse ajoelhado a seu lado.

O menino abriu os olhos. O sonho tinha acabado. O pesadelo, não.

De costas na cama, com o rosto de lado no travesseiro, ele não conseguia se mover. Os braços estavam colados ao lado do corpo. As pernas pregadas no colchão. O pescoço não se mexia. O afundamento na cama foi se intensificando. Sentiu próximo ao seu joelho esquerdo. Depois, a coxa direita.

Seja o que for que estivesse ali, estava se movendo rumo ao ouvido do garoto. O suor escorria por sua fronte. Era o esforço muscular para vencer a inércia.

A respiração era ofegante.

A dele.

A respiração era pausada.

A da coisa.

Um cheiro horrível entrou pelas narinas do menino.

E uma risada ecoou baixinho enquanto a pressão em suas costas não deixava dúvidas. O bicho estava sentado sobre ele.

– Reza.

Foi o que pensou o menino sem conseguir mover a boca.

– Reeeza.

Foi o que sussurrou o sobrenatural.

E riu de novo.

A pressão se tornou insuportável. Sentiu o peso em toda sua pele. Em todos os seus músculos. Em todos os seus ossos.

O colchão ficou leve. Os olhos pesados.

E ele dormiu.

No dia seguinte, acordou e olhou a lâmpada. Apagada.

Foi até o quarto da mãe. Ela estava se levantando.

O bom dia foi seguido de uma pergunta.

— Fui eu que apaguei a luz, filho.

— Obrigado, mãe.

Não teve beijo. Nem poderia. Não de quem estava agradecendo. Ele não conhecia nenhuma manifestação de afeto.

Já o agradecimento foi sincero, apesar de irônico.

A luz apagada facilitou tudo.

Ele precisava do escuro. Precisava do medo. Precisava de um corpo. Jovem. Com muita vida terrena pela frente.

No banheiro, olhou-se no espelho.

Na boca, um sorriso de felicidade.

Nos olhos, um pedido de socorro.

Em vão.

Nem esse, nem os outros que seriam emanados pela casa durante o dia, seriam ouvidos.

Gostou? Tem uma história de terror pra compartilhar? Mande pra mim no e-mail alexsexta13@gmail.com. Vou pegar suas informações para escrever contos aqui nesta coluna. Podem ser lendas da cidade, episódios ocorridos com parentes, histórias de vizinhos. Ajude a aproximar e a compartilhar o medo. Espero você! Até lá.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Toda Sexta é 13, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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